sábado, 6 de outubro de 2012

O ESTUDO DOS METAPLASMOS NA MORFOLOGIA DO LATIM AO PORTUGUÊS




Raimundo Rodrigues de Farias Filho[1]
Orientador: Prof. Vicente Martins

         Este trabalho consiste em fazer um estudo diacrônico das alterações fonéticas, ou metaplasmos na passagem do latim ao português. O estudo diacrônicos, proposto neste trabalho, compreende a história externa que é a evolução sociolingüística e a história interna, ou seja, a evolução estrutural da língua em seus aspectos fonológicos e morfossintáticos. No caso do português, uma língua românica, esse estudo tem como ponto de partida a distinção entre o latim clássico e o latim vulgar. A partir dessa distinção fundamental, traçaremos uma síntese da evolução histórica do nosso sistema gramatical, retomando ao latim vulgar da Península Ibérica e às inovações introduzidas pelo português arcaico até chegar ao português moderno.
O estudo da Língua Portuguesa a partir da gramática tradicional sem levar em consideração o contexto sociolingüístico, parece-nos quase que um fim em si, completamente alheio a uma realidade comunicativa dos falantes, isso porque o estudo dessa gramática sem inseri-lo em um contexto histórico fica esvaziado de significação.
Esse trabalho tem por objetivo desvelar, ainda que simploriamente, as relações que convergiram na formação da estrutura gramatical da língua portuguesa a partir de um estudo diacrônico de sua origem, o latim.
O estudo diacrônico proposto nesse trabalho está voltado para as alterações fonéticas, ou metaplasmos, na estrutura morfológica ou morfossintática na passagem do latim ao português, iniciando pela expansão romana e por via de conseqüência de sua língua, o Latim; seguindo pela evolução do latim a partir do contato com outras línguas e posteriormente temos a tipologia de metaplasmos, onde foram enumerados e devidamente conceituados os metaplasmos; as alterações fonéticas entre o latim Clássico e o Vulgar, isto é, as duas vertentes da mesma língua que coexistiam simultaneamente; o caso lexicogênico do acusativo, do qual se originou a língua portuguesa; vocalismo que foram as transformações sofridas pelas vogais; metaplasmos dos ditongos, hiatos, consoantes e grupos consonantais – que foram as transformações sofridas por cada um destes; as declinações latinas, base da estrutura gramatical latina; seguindo –se a morfologia subdividindo-se em: substantivo, adjetivo, numeral, artigo, pronome, verbo e advérbio; isto é, o processo que culminou na formação de cada uma dessas classes gramáticas a partir de sua base latina.
E é, exatamente, nesse processo de evolução que buscaremos na raiz latina aquilo que ainda está vivo e presente no falar do povo brasileiro e na sua língua padrão.

 

1. A EXPANSÃO ROMANA


 O latim foi, primeiramente, o idioma falado em uma pequena região situada na zona da Itália Central à margem esquerda do rio Tibre, próximo ao mar Tirreno (atualmente mar Mediterrâneo) chamada Lácio, posteriormente Roma, fundada segundo consta por Rômulo no dia 21 de abril de 754 a.C. A história de Roma é dividida em três grandes períodos: Monarquia (754 – 509 a. C) República (509 – 31 a.C) e Império (27 A.C – 407 d.C).

Em princípio, essa região era habitada, apenas, por pequenos agricultores e tinham como vizinhos os estruscos e outros povos da Península Itálica. A pesar de a língua latina não ser a única falada na Península – falava-se também o osco, o umbro o etrusco e o grego. Foi durante o período da República que Roma desenvolveu sua economia e cultura e começou sua expansão territorial em conquistas bélicas.

Em cerca de 500 anos, a pequena região do Lácio se tornou uma das maiores potências que o mundo já conheceu: primeiramente, os romanos dominaram toda a Penisula Itálica, depois disso, houve as chamadas Guerras Púnicas contra Cartago. Eliminando Cartago em 146 a.C o exército romano partiu para a conquista de outras regiões: Espanha, Portugal Gália (França, Suiça, Bélgica, Alemanha), Marcedônia, Grécia e o Oriente próximo, a África do Norte e o Egito. Além disso, conquistaram também as ilhas Sicília, Sardenha, Córsega, Creta, Chipre, Rondes etc. e essa língua do Lácio vai implantando-se seguindo as conquistas do exército de Roma, mas em algumas regiões que hoje compreendem a Grã-Bretanha, Holanda, Iugoslávia e Hungria não houve uma predominância sobre o linguajar local.

No seu apogeu, os romanos já tinham dominado completamente todos os territórios que cercavam o Mar mediterrâneo – chamado por ele de Mar Nostrum (nosso mar) – chegando até mesmo no Norte da Europa, ao sul das Ilhas Britânicas.
No período do século I ao século V d.C., a língua latina passou a tomar uma forma literária, constituindo-se, aos poucos, uma gramática com normas explícitas. O século I a.C. é considerado o período clássico do latim. Porém, o latim que era falado nos territórios conquistados não era o latim clássico, era o latim dos soldados dos escravos, dos comerciantes, do povo romano. Era o chamado latim vulgar. Era, ao contrário do latim clássico, quase exclusivamente falado, sem se ater a regras formais e sem demasiada preocupação com a norma. Foi dessa língua popular, com o contato com a língua dos povos conquistados que se originam as línguas românicas, dentre elas, o português.
A pesar da grande dominação romana, o Estado Romano, durante o auge das suas conquistas, não conseguia mais manter uma unidade administrativa e política. E, ao atingir o ápice do seu expansionismo, o Império Romano começou a ruir.
Em 395 da nossa era, o grande império foi dividido em duas partes, a fim de fortalecer cada uma delas. Formaram-se, então, o Império Romano do Ocidente, com sede em Roma, e o Império romano do Oriente, com sede em Constantinopla.
A queda do Império Romano do Ocidente se deu em 476 com a morte do imperador Rômulo Augusto. O do Oriente, por sua vez, durou até 1453, quando os turcos conquistaram Constantinopla, terminando de vez com o império Romano.

2. A EVOLUÇÃO DO LATIM
Com a hegemonia do império romano em toda Europa e em parte da África e da Ásia, região conhecida como România, o latim veio a se tornar a língua oficial da Gália ou Galiza (França e parte da Bélgica), da Península Ibérica, da Líbia e da Romênia. A implantação do latim na Península Ibérica constitui fator decisivo para a formação da língua portuguesa, com exceção dos bascos, todos os povos da Península adotaram o latim como língua e que se cristalizou.
A romanização da Península não se deu de maneira uniforme, mas pouco a pouco o latim foi se impondo, fazendo praticamente desaparecer as línguas nativas. Os povos que habitavam a Península eram numerosos e apresentavam língua e cultura bastante diversificadas. O latim falado nas diferentes regiões do Império Romano tinha uma realidade tão diversificada que, no século III da nossa era, a unidade lingüística do império já não mais existia. Essa imensa diferenciação dialetal é uma das principais causas da transformação do latim nas línguas românicas.
Por volta do século V, a Península sofreu invasão de povos bárbaros germanos entre eles os visigodos que dominaram a península Ibérica, a unidade romana rompe-se totalmente. Os visigodos romanizaram-se: fundiram-se com a população românica e adotaram o cristianismo como religião e assimilaram o latim vulgar. 
O século V marca o início do Romanço que é o conjunto das línguas românicas ou uma dessas línguas, mas aplica-se de preferência o termo para designar a fase final do latim vulgar depois do século III d.C., quando já contrasta com o latim clássico. É nesse período que ocorre a grande diferenciação do latim em uma multiciplicidade de falares. Trata-se de uma fase de transição, que resulta no aparecimento de textos escritos nas diversas línguas românicas. Dentre esses falares intermediários está o Romanço Lusitânico, bastante inovador e o que nos interessa principalmente.

No século VIII, os povos muçulmanos invadiram a Península Ibérica. Compreendiam os árabes e os berberes e eram chamados de mouros pelos habitantes da Península, que foi totalmente dominada. O árabe era a sua língua de cultura e a sua religião era o Islamismo. Tanto a língua como a religião eram muito diferentes da língua e da religião praticada na região e não houve imposição de uma ou outra. A língua árabe era a oficial, mas o latim, já bastante diferenciado, era a língua de uso.

Extremamente diversificado, o latim continuou a evoluir entre a população submetida. Como resultado da interpenetração da língua árabe e da língua popular de estrutura românica, o moçárabe era falado pela população cristã que viveu sob o domínio árabe.
Com a finalidade de libertar o território ibérico, nobres de diferentes regiões participaram da guerra santa. D. Henrique, conde de Borgonha, pelos serviços prestados, recebeu do rei de Leão e Castela o Condado Portucalense - território desmembrado da Galiza, junto ao rio Douro. A língua desse território era a mesma da Galiza. Coube a seu filho, D. Afonso Henriques, iniciar a nacionalidade portuguesa, como primeiro rei de Portugal. Ao se separar da Galiza, Portugal vai estendendo seus limites através de lutas contra os árabes e, com a conquista do Algarve, fixa os limites atuais de Portugal. A língua falada era o romanço galego-português, que apresentava relativa unidade e muita variedade, e dá origem ao galego e ao português.
A história do léxico português, basicamente de origem latina, reflete a história da língua portuguesa e os contatos de seus falantes com as mais diversificadas realidades lingüísticas, a partir do romanço lusitânico. Esse acervo apresenta um núcleo de base latina popular que é resultante da assimilação e das transformações do latim pelas populações nativas ibéricas e complementadas por contribuições pré-românicas e pós-românicas de substrato (em que a população conquistada absorve a língua dos dominadores), de superstrato (em que os dominadores adotam a língua dos dominados) e de adstrato (em que as línguas coexistem, podendo haver até um bilingüismo); e a isso somasse também os empréstimos lingüísticos. Foram os termos populares que deram feição ao léxico português, quer na sua estrutura fonológica, quer na sua estrutura morfológica. Mesmo no caso de empréstimos de outras línguas, foi o padrão popular que determinou essa estrutura.
Dentro da contribuição pré-românica (camada do substrato), destacam-se vocábulos de origem ibérica (abóbora, barro, bezerro, cama, garra, louça, manteiga, sapo, seara); céltica (bico, cabana, aminho, camisa, cerveja, gato, légua, peça, touca); grega (farol, guitarra, microscópio, telefone, telepatia); fenícia (apenas, saco, mapa, malha e mata - não havendo muita clareza quanto à sua origem).
A contribuição pós-românica, em que os dominadores adotam a língua dos dominados, compreende palavras de origem germânica, relacionadas ao modo de vida de seu povo e à arte militar; são exemplos nomes como Rodrigo, Godofredo, guerra, Elmo, trégua, arauto e verbos como esgrimir, brandir, roubar, escarnecer.
Apesar de não impor religião e língua, ao conquistarem a Península Ibérica, os árabes deixaram marcas no nosso léxico. Nessa região, houve a coexistência mútua da língua árabe (língua oficial) e o latim (língua popular). As palavras de origem árabes que se cristalizaram no português corrente referem-se a nomes de plantas, de alimentos, de ofícios, de instrumentos musicais e agrícolas: alface, algodão, álcool, xarope, almôndega, alfaiate, alaúde, alicate.
Quanto aos empréstimos culturais, ou seja, os que decorrem de intercâmbio cultural, há no léxico português influências diversas de acordo com as épocas: na época medieval, a poesia trovadoresca provençal influenciou os primeiros textos literários portugueses. Porém, muitos vocábulos provençais, correntes nas cantigas dos trovadores medievais, não se incorporaram à nossa língua. São exemplos de empréstimos provençais: balada, estandarte, refrão, jogral, segrel, trovador, vassalo, etc., no século XV ao século XVIII, muitos escritores portugueses, entre eles os poetas do Cancioneiro Geral, Gil Vicente, Camões, escreviam em castelhano e português, o que se explica pelas relações literárias, políticas e comerciais entre as duas nações ibéricas. Como contribuição de empréstimos espanhóis para o léxico português, temos, entre muitas outras palavras como bolero, castanhola, caudilho, gado, moreno, galã, pandeiro, etc.
O latim corrente já havia contribuído para a base do léxico português, mas foi durante o Renascimento, época em que se valorizou a cultura da Antigüidade, que as obras de escritores romanos serviram de fonte para muitos empréstimos eruditos. Por essa via, desenvolveu-se um processo de derivar palavras do latim literário, em vez de se partir do termo popular português correspondente (daí uma série de adjetivos com radical distinto do respectivo substantivo: ocular / olho, digital / dedo, capilar / cabelo, áureo / ouro, pluvial / chuva). Esse processo é responsável pela coexistência de raízes distintas para termos do mesmo campo semântico. Houve também a substituição de muitos termos populares por termos eruditos ( palácio / paaço, louvar / loar, formoso / fremoso, silêncio / seenço, joelho / geolho ).
A expansão portuguesa na Ásia e na África foi mais uma fonte de empréstimos. São de origem asiática: azul, bambu, berinjela, chá, jangada, leque, laranja, tafetá, tulipa, turbante, etc. São de origem africana: angu, batuque, berimbau, cachimbo, engambelar, marimbondo, moleque, quitanda, quitute, samba, senzala, vatapá, etc.

Em virtude de relações políticas, culturais, comerciais com outros países, é natural que o léxico português tenha recebido (e continue recebendo) empréstimos de outras línguas modernas. Assim, incorporaram-se ao nosso léxico palavras provenientes do francês (chefe, hotel, jardim, paisagem, vitral, vitrina); do inglês (futebol, bife, córner, pudim, repórter, sanduíche, piquenique); do italiano (adágio, alegro, andante, confete, gazeta, macarrão, talharim, piano, mortadela, serenata, salame); do alemão (valsa, manequim, vermute). Nos tempos atuais, o inglês tem servido de fonte de inúmeros empréstimos, sobretudo nas áreas técnicas, o que demonstra a estreita ligação que o processo de mudança lingüística tem com a história sócio-política-cultural de um povo.



3. TIPOLOGIA DE METALASMOS

Os metaplasmos são alterações (queda, acréscimo ou modificações de fonemas) por que as palavras passam em nossa evolução, no nosso caso do latim para o português. Essas alterações são apenas fonéticas, já que as palavras conservam seu significado mantendo o mesmo campo semântico. Os metaplasmos podem ser assim distribuídos:

3.1. Metaplasmos por acréscimo:
3.1.1. Prótese: é o acréscimo de um fonema no início de uma palavra, ex: statua > estátua.
3.1.2. Epêntese: é o acréscimo de um fonema dentro de uma palavra, ex: stella > estrela
3.1.3. Epítese: é o acréscimo de um fonema no final de uma palavra. É mais raro, ex: ante > antes.

3.2. Metaplasmos por supressão:
3.2.1. Aférese: é a supressão de um fonema no início da palavra, ex: apothecam > apotheca > apoteca > abodega > bodega.
3.2.2. Síncope: é a supressão de um fonema dentro da palavra, ex: malu > mau.
3.2.3. Apócope: consiste na supressão de um fonema no final da palavra, ex: mare > mar.
3.2.3. Crase: é a junção de dois fonemas vocálicos iguais, ex: dolore > dolor > door > dor.
3.2.4. Haplologia: é a supressão de uma sílaba dentro de um vocábulo onde existe outra igual ou semelhante, ex: medidiale > mediale > medial.
3.2.5. Sinalefa: acontece quando da junção de dois sons vocálicos de dois diferentes vocábulos, sendo que um termina por vogal átona e o outro por vogal átona. A vogal inicial sempre sofre queda, ex: de + intro > dentro.

3.3. Metaplasmos por transposição:
3.3.1 Por transposição de acento:
3.3.1.1. Hiperbibasmo: mudança de lugar do acento.
3.3.1.1.1. Diástole: é a mudança de lugar do acento para frente. O acento avança para a sílaba seguinte, ex: gémitu > gemido, íntegru > íntegro > inteiro.
3.3.1.1.2. Sístole: é o recuo do acento para a sílaba anterior, ex: erámus > éramos, idólu > ídolo
3.3.2 Por transposição de fonemas:
3.3.2.1. Metátese: o fonema muda de lugar na mesma sílaba, ex: semper > sempre.
3.3.2.2. Hipértese: o fonema muda de lugar de uma sílaba para outra, ex: capio > caibo, rabiam > rabia > ravia > raiva.

3.4. Metaplasmos por transformação:
3.4.1. Assimilação: consiste na transformação de um fonema em outro igual ou semelhante a outro fonema existente na palavra. Um fonema “influência” outro para torná-lo igual ou parecido consigo, ex: persona > pessoa (O “s” influenciou o “r” de tal maneira que este se transformou em “s”. Temos então, assimilador = s; assimilado = r), auro > ouro (por influência do “u”, o fonema vocálico “a” transforma-se em “o”)
3.4.2. Dissimilação: é a diferenciação de dois fonemas iguais ou semelhantes de modo que o fonema dissimilado desapareça ou se torne diferente do fonema dissimilador, ex: cribrum > cribro > cribo > crivo, memorare > membrar > lembrar.
3.4.3. Sonorização: é a transformação de um som surdo em um som sonoro. ex: totum > toto > todo, aqua > água
3.4.5. Palatização: é a transformação de qualquer fonema ou grupo de fonemas em um som palatal, ex: vinea > vinha, juliu > julho, invidiam > invidia > invedia > inveja.
3.4.6. Ditongação: é a transformação de um monotongo em um ditongo, ex: basium > basio > bajo > baijo > beijo.
3.4.7. Monotongação : é a transformação de um ditongo em um monotongo, ex: eiclesiam > eiclesia > eicresia > eigreja > igreja
3.4.8. Oclusão: é a transformação de um hiato em um ditongo, ex: malum > malo > mao > mau, pae > pai.
3.4.9. Nasalização: é a transformação de um fonema oral em um fonema nasal. Ex: mihi > mim, nec > nem.
3.4.10. Desnasalização: é a transformação de um fonema nasal em um fonema oral ex: bona > bõa > boa, ventanam > ventana > ventãa > ventã > venta.
3.4.11. Sibilação: é a transformação de fonemas, ou grupos de fonemas não sibilantes em sibilantes (sibilantes: /f/, /v/, /s/, /z/), ex: cribrum > cribro > cribo > crivo, lancea > lança
3.4.12. Consonantização: é o processo de transformação de vogais em consoantes. Acontece, principalmente, com o i > j e com u > v, ex: uitam > uita > uida > vida
3.4.13. Vocalização: é o processo de transformação de uma consoante em uma vogal, ex: octo > oito, regnum > regnu > regno > reino.
3.4.14. Metafonia: é a mudança de timbre de uma vogal por influência de outra, ex: debitam > debita > debida > devida > dívida.
3.4.15. Apofonia: consiste na mudança de timbre da primeira vogal por influência de um prefixo, ex: in + salsa > insulso, in + barba > imberbe.
3.4.16. Rotacismo: é a transformação de qualquer consoante em r [r], ex: pallidum > pallido > palido > paldo > pardo.
3.4.17. Bilabiação: é a passagem v do para o b, ex: uascellum > vascellum > vascello > bascello > bascelo > bascel > bachel > baichel.


4. ALTERÇÕES FONÉTICAS

O Latim que num primeiro momento apresentava-se como uma língua meramente oral foi constituindo-se em uma estrutura lingüística técnica, formal e tradicional conduzidas pelas pessoas que representavam a elite social e intelectual da época, estrutura essa não compartilhada pela população, que era a maioria dos falantes e que utilizavam a língua na oralidade do dia-a-dia, tendo como conseqüência uma língua dinâmica e o desapego às estruturas formais, fazendo com que essa língua do povo, que ficou conhecida como Latim Vulgar apresentasse formas divergentes do Latim Clássico, entre elas algumas alterações fonéticas que iremos estudar.
Na verdade não houve uma evolução da língua no sentido de ter havido uma passagem gradual do Latim Clássico para o Latim Vulgar, mas uma bifurcação que fez no latim duas modalidades diferentes de uma mesma língua e esse desdobramento apresentou marcas significativas na estrutura e na pronúncia.
Podemos perceber algumas diferenças entre essas duas modalidades.

4.1. Propensão para evitar os vocábulos proparoxítonos: Viridis (LC) – virdis(LV), Calidus(LC) - caldus (LV), Frigida(LC) - fricda(LV). No Latim Clássico já se acentuava a penúltima sílaba, embora breve, toda vez que lhe seguia um grupo de oclusiva e “r” como nos casos: colŭbra, cathĕdra, tenĕbras. O latim literário também apresentava confusão na posição do acento entre as paroxítonas e proparoxítonas nas palavras em que a penúltima sílaba se seguia de um grupo consonântico formado de oclusiva e “r” como nos casos tenébre/ténebre ou uólucri/uolúcri em que era usada tanto uma forma quanto a outra.
Como podemos perceber essa propensão já era uma tendência do próprio Latim Clássico e no Latim Vulgar ocorreu apenas uma intensificação dessa tendência.
Os fenômenos fonéticos que se manifestaram nessa mudança, conforme os exemplos, foram: a síncope como na passagem Calidus/caldus e Viridis/virdis já que ouve uma supressão do fonema / i / na sílaba postônica, no último exemplo / frigida/ e / frikįda /, ocasionou a dessonorização na mudança do som /g / - sonoro para o / k / - surdo, o / į / veio por assimilação do fonema / i / tônico.
Essa mudança de tonicidade na sílaba também ocorria no latim vulgar quando a vogal postônica se acha:
4.1.1. Depois de uma consoante qualquer e antes de uma lateral ou vibrante ex: oclus (óculos).
4.1.2. Entre uma labial e outra consoante: domnus (dominus), lamna (lamina).
4.1.3. Entre uma vibrante ou lateral e outra consoante: ardus (aridus), soldus (sólidos).
4.1.4. Depois de “s” antes de outra consoante: postus (positus).

 4.2 Redução a simples vogais, dos hiatos e ditongos: Aurum (LC) - orum(LV), Quietus (LC) – dodece (LV), Praeda (LC) - pedra (LV).
Em latim, havia somente quatro ditongos: “ae”, “oe”, “au”, e eu (raro):
4.2.1. O ditongo “ae” pretônico reduz-se a “i” e a “e” (/e/).
4.2.2.  “ae” tônico da “e” (Nas inscrições hispânicas, esse ditongo aparece reduzido a “e” do século I em diante).
4.2.3. O “au” transformou-se em “ou”. Desde o império, por influência dialetal tendia esse ditongo a transformar-se em “o” na língua da plebe. No início de palavras o ditongo “au” ficaria apenas em “a” se a sílaba tônica seguinte contivesse a vogal “u” por processo de dissimilação.
4.2.4. Com o ditongo “eu” houve uma condensação em “o” na linguagem popular: Eusébio > Osébio, Eulália > Olália. Esse ditongo ocorria em número muito reduzido de palavras latinas.
A essa transformação de um ditongo em um monotongo chamamos de  monotongação.

4.3. Desnasalização freqüente ou queda do fonema nasal nos grupos nf e ns: Mensa(LC)  - mesa(LV), Persona (LC) - pessoa (LV),  Ansa(LC) - asa (LV).    
A desnasalização foi uma tendência muito forte que ocorreu entre o Latin Clássico e o Vulgar e depois seguindo através do tempo, ocorreu principalmente com o n intervocálico, como nos casos: sinu > senu > seo > seio; arena > area > areia; frenu > freo > freio, que pode ter como causa os empréstimos ao se adaptarem ao novo sistema fonêmico e estruturação silábica de outras línguas por expansão do império romano. Tendo ocorrido primeiro a síncope do /m/ e do /n/ e depois a desnasalização ou transferindo a nasalização para o fonema vizinho: litania > lidaĩa > ladainha. A queda ou sincope do n em posição intervocálica do latim é um fenômeno fonético que caracteriza as variantes hispano-românicas do noroeste peninsular, isto é, a variante galego-portuguesa, em oposição às outras – leonês, castelhano etc. Considera-se que essa mudança fônica começou a ocorrer no século X ou XI e estaria em curso no século XII nas vésperas no aparecimento dos primeiros textos escritos galego-portugueses.

4.4. Pelo acréscimo (prótese) das vogais “e e “i nos grupos consonaitais SP, SC, e ST iniciais: Stare (LC) – istare (LV), Spiritus (LC) – ispiritus (LV), Scribere (LC) – iscribere (LV).
Como o /s/ inicial que antecedia outra consoante dificultava a pronúncia, foi colocado /e/ protético em muitos casos. Em outros, o /a/ inicial proveio do prefixo latino "ad", como em ad plicare > adplicare > aplicare > achegar; ad oculare > adoculare > aolhar > olhar; ad uenire > aduenire > avir.
A aglutinação é uma modalidade especial de prótese que é a incorporação de artigo definido ao vocábulo, como em lacuna > a lagoa > alagoa > lagoa; a minacia > aminacia > ameaça; rana > a rãa > arrã > rã; mora (plural) > a mora > amora; raia > a raia > arraia.

4.5. Assimilação freqüente: Ipse (LC) – isse (LV), Dorsum (LC) - dossum (LV), Persicum (LC) - pessicum (LV).
Podemos perceber nesses três exemplos algo em comum a assimilação regressiva total: no primeiro caso da fricativa alveolar surda pela oclusiva bilabial surda, e nos outros dois casos da fricativa alveolar surda pela vibrante alveolar sonora.
Isso mostra a grande influência do fonema /s/ como assimilador tanto nos contóides surdos e sonoros. Influência essas que se manteve na passagem do latim para o português como no caso de:  pérsicu > pêssego, dorsellu > dossel

4.6. Perda da aspiração do “h”: hac hora (LC) - ac ora (LV), homo (LC) - omo (LV), heres (LC) – eres (LV).
A letra h”, que era símbolo de aspiração, realizada em certas épocas na pronúncia do latim clássico, foi conservado durante muitos séculos na grafia do latim. Passou para a grafia  do  português, apesar de  não possuir aspiração. A produção desse som ocasionada por ação de uma fricativa glotal, e que provavelmente tenha influenciado na queda posterior da mesma em vocábulos de origem grega para o latim por substrato, tais como: theologia > teologia, phonética > fonética , chimica> química , rhitmo > ritmo.

4.7. Transformação ou desaparecimento de alguns fonemas: Mecum (LC) – mecu (LV), Iustitia (LC) -             justicia (LV), Riuus (LC) – rius (LV).
No primeiro caso podemos perceber uma desnasalização da vogal postônica, no segundo caso ocorreu uma consonantização na sílaba inicial, no último caso houve uma crase. Esses fenômenos fonéticos foram muito presentes na passagem do latim para o português.

4.8. Pelas confusões ocasionadas pelos fonemas “i e “e, principalmente quando integram hiato: Vinea (LC) - vinia (LV), Lileum (LC) - lilium (LV), Nubes (LC) - nubis (LV).
Nesses casos o que aconteceu foi um fechamento da vogal postônica de /e/ para /i/, que num primeiro momento poderíamos atribuir a uma assimilação pela vogal tônica /i/, mas quando verificamos a ocorrência no termo nubes > nubis, desfaz-se essa primeira hipótese, atribuindo-se, por tanto, tais mudanças ao fenômeno da metafonia.

4.9. Pelas confusões ocasionadas pelos fonemas b e v: Servus (LC) – serbus (LV), Alveus (LC) – albeus (LV).
Nesse caso o que houve foi uma mudança no ponto de articulação saindo de labiodental para uma bilabial, conservando a sonoridade ocorrendo, dessa forma uma bilabiação.


5. O CASO LEXICOGÊNICO

O caso acusativo é lexicogênico no Português. Lexicogenia é gerar palavra, léxico, vocábulo, então podemos concluir que a grande maioria das palavras de origem latina do português vem do caso acusativo. Com raras exceções como alguns substantivos terminados em “a” que se originam do nominativo feminino da primeira declinação e de alguns substantivos masculinos que faziam o nominativo em “us” (principalmente os nomes próprios masculinos), onde alguns passaram para “o” e outros conservaram a sua forma original, o léxico da língua portuguesa é predominantemente originário do acusativo como nos casos: “qualidade” vem do acusativo “qualitatem” e não do nominativo “qualitas”, “conde”, do acusativo “comitem” e não do nominativo “comes”, “limite” vem do acusativo “limitem” e não do nominativo “limes”; isto é mais claro nos plurais: “amigos”, do acusativo “amicos” e não do nominativo “amici”, “amigas”, do acusativo “amicas”, não do nominativo “amicae”. Esse processo se deu inicialmente quando dos cinco casos do latim clássico passaram para apenas dois no latim vulgar e, pouco a pouco, principalmente num processo iniciado no latim falado na parte ocidental do Império, o acusativo foi substituindo os outros casos.
Devido à lei do menor esforço tanto o caso acusativo, normalmente terminadas em “um” como as formas masculinas da segunda declinação terminados em “us” foram sofrendo modificação com o apócope do “m” e do “s” respectivamente e posteriormente com a metafonia do “/u/”  para /o/ resultando assim nas seguintes formas:  Paulus(nom. 2ª dec.) > Paulu > Paulo, templum(ac. 2 declinação)  > templu > templo, Deus(nom. 1ª dec.) > Deus,  rosǎ(nom.  1ª dec.) > rosa.


6. VOCALISMO

As transformações sofridas pelas vogais, na fase de transição do latim vulgar ao português devem-se, sobretudo, a quantidade, já que houve uma considerável diminuição das mesmas, e a posição.
Com relação à quantidade podemos dividir as vogais latinas em longas e breves, a oposição vogal breve/longa era um traço relevante no sistema fonológico do Latim Cássico. Assim, por meio dessa oposição, distinguiam-se casos, como o nominativo rosă do ablativo rosā, o presente lĕgit (lê) do passado lēgit (leu), o adjetivo mălum (mau) do substantivo mālum (maçã) ou valores semânticos do tipo dĭco (consagro) e dīco (digo). Com a perda da quantidade vocálica no Latim Vulgar, as vogais passaram a distinguir-se pela qualidade (timbre aberto/fechado), criando-se o seguinte quadro de correspondências: ā, ă > a, ĕ > é, ē, ĭ > ê, ī > i, ŏ > ó, ō, ŭ > ô, ū > u. Em outras palavras, o Latim Clássico era constituído de 10 vogais e o  Latim Vulgar era constituído 7 vogais que passaram para o português.
Segundo NETO, Serafim da Silva (1988) o que contribuiu para essa alternância entre o prolongamento da vogal (longa e breve) no Latim Clássico para o timbre (aberto e fechado) no Latim Vulgar foi o fato de que a princípio no Latim Clássico essas vogais eram constituídas de uma sonoridade musical e que pouco a pouco foi mudando essa natureza tornando-se mais intensivo. E no dizer de Serafim da Silva Neto:

Esse fato tem importância capital, porque o acento de intensidade conduz ao abreviamento e até mesmo a queda das vogais átonas, enquanto, por outro lado, alonga a sílaba sobre a qual recai: em suma, acarreta a subversão de todo o sistema da quantidade silábica.(SILVA NETO: 1988,  p. 63)

Quanto à posição das vogais em relação à sílaba tônica, podemos dividi-las em tônicas, pretônicas e postônicas.
Com relação à tonicidade das vogais, as tônicas foram as que menos sofreram esse processo de mudança, tendo ocorrido apenas o processo de mudança comum, já citado. Isso ocorre porque o acento obrigando a maior pausa da voz, faz com que elas resistam e se mantenham.
Mas houve algumas alterações fonéticas na vogal tônica em que podemos identificar os seguintes fenômenos fonéticos:
Metafonia - na mudança do ĭ para e (/e/) em: pĭlum > pêlo e do ŭ para o em: gŭtta >  gota.
Assimilação - fame > fome por influência das labiais “f” e “m.
Dissimilação: phantasmas > abantesma > fantasma.
Analogia: arbuto > êrvodo por influência de erva.
Influência de outras línguas:  tagu >  tejo (árabe),  capui > chefe(francês).
No caso das pretônicas e das postônicas essas alterações já ocorreram de maneira mais intensa.
Com as pretônicas podemos destacar os seguintes metaplasmos:
Aférese: sapothecam > aphoteca > apoteca > abodega > bodega, inamorare > namora. Ocorre a queda por isolamento da vogal.
Síncope - bonitate > bondade, verecunnia > verecundia > vergonha, comperāre > compra.
Assimilação - bilancia > balança, novacula > navalha.
Com as postônicas houve alteração tanto nas finais quanto nas não-finais.
Nas postônicas finais.

6.1. O “i” modificou-se para “e”:  dixi > disse.
No caso de dixi > disse podemos perceber uma dissimilação por conta do i tônico, mas essa tendência foi aplicada também em outras formações como: sapui> saupi > saubi> soube, assim como capui > coube; nesses casos podemos perceber uma metafonia pois houve  do fonema u que pode ser um fator de influência nesse processo de mudança.

6.2. O “ŭ” modificou-se para “o”: metu >medo
Nesse caso de metu >medo percebemos uma sonorização do fonema /t/ para /d/ o que pode ter influenciado numa abertura de /u/ para /o/, fenômeno esse que nós encontraremos em sŭper> sobre, lŭpo > lobo, o que poderia caracterizar assimilação, mas quando percebemos as formas gŭtta> gota, ŭnde > onde, notamos que era uma tendência natural essa passagem o que vai caracterizar uma metafonia.

6.3. O “e cai depois de “r”, “l”, “s”, “z”, “n”.
Quando o fonema que com ele formava sílaba, pode formar igualmente sílaba com os fonemas anteriores: amare > amor, fidele > fiel, mense >mês, vorace > voraz, sine > sem.
Já as vogais postônicas não finais geralmente caem, com exceção de “a”, isso ocorre, principalmente, em palavras proparoxítonas: generu > genro, calidu > caldo, lepore > lebre.
No latim vulgar geralmente havia a sincope da vogal postônica nos seguintes casos: entre uma consoante e uma labial ex: Dominus (LC) – domnus (LV), quando colocada após um “s” e antes de outra consoante ex:  Positus (LC) – postus (LV), antes de uma vibrante ou lateral  e posterior a uma consoante oclusiva ex: Masculus (LC) – masclus (LV), localizada entre uma vibrante e uma lateral e uma outra consoante ex: Aridus (LC) – ardus (LV)


7. METAPLASMOS DOS DITONGOS

Houve uma monotongação na redução do ditongo “ae tônico para “e” (/e/) saeculu > século, caecu > cego e pretônico para “i”  e “e” (/e/): aetate > idade caeco > cego e tônico da e/e/: caelu > céu; com o ditongo “oe” reduz-se a “e” (/e/): foedu > fedo >  feio; o ditongo “au” reduziu-se para “o”: aurícula > orelha, houve também a perda da vogal “u” se a sílaba tônica que a seguisse contivesse a vogal “u por processo de disssimilação: augustu >agustu > agostu > agosto; na  condensação do dotongo eu em e (/e/) : leuca > légua (esse ditongo ocorria de maneira muito resumida no latim).

7.1.  Houve epêntese de uma semivogal na formação do ditongo “ei”: credo > creo > creio;

7.2. Houve hipértese na mudança silábica do “i” em rabia > rabie > ravia > raiva, ocorrendo assim uma mudança do ditongo da sílaba pós-tonica para a sílaba tônica

7.3. Houve metafonia na passagem do “a” tônico para “e”, por influência do “i” mais fechado: rabia> rabie, ou em amai > amei, assim como do “a” para “o” por influência do “u” em e a “o” amaut > amou: thesauru > tesouro.

7.4. Houve vocalização na formação no ditongo “ei” em: lacte > leite

7.5. Houve ditongação:
7.5.1. A partir da queda ou síncope do fonema medial: pater > patre > pai, malu > mau.
7.5.2. Na última fase do latim vulgar surge o ditongo “ai” em conseqüência da queda da consoante medial: primariu > primairo > primeiro:
7.5.2.1. A partir da vocalização do fonema quando anteceder a “p,c” e “t: palpere > paupar > poupar, falce > fauce > fouce, alteru > autro > outro.
7.5.2.1. Na metátase ou troca de fonemas: ferrario> ferrairo > ferreiro, operariu > obrairo > obreiro.
7.5.2.3. Na epêntese de uma vogal com a finalidade de desfazer um hiato: credo > creo > creio, tela > tea > teia, arena > área> areia.
E pelo processo vocalização na passagem do “l para o “u também na formação desse ditongo au: palpere > paupar > poupar.


8. METAPLASMOS DOS HIATOS

Ao estudarmos os fenômenos lingüísticos do português notamos uma acentuada preocupação em eliminar os hiatos. Tal preocupação já era verificada no latim vulgar.
Na língua portuguesa o hiato é desfeito:

8.1. Pela crase: palumba > paomba > poomba > pomba, pede > pee > pé, sedere > seer > ser.
8.2. Pela oclusão: ego > eo > eu, caelu > celo > céo > céu cena > cea >ceia, vena > vea > veia; credu > creo > creio.
8.3. Pela palatalização: vĩo > vinho
8.5. Pela síncope de uma vogal em razão da absorção por uma consoante da mesma natureza: angeo > anjo, rigeo > rijo e de uma consoante medial, sobretudo o “l” e o “n” a partir do século XI: colore > coor > cor, dolore > door > dor, sedere > seer > ser.


9. METAPLASMOS DAS CONSOANTES

Na evolução das consoantes devemos distinguir as consoantes simples dos grupos consonantais.

9.1. Consoantes simples
Com relação à posição das consoantes latinas, as que mais sofreram modificação foram as mediais como de “b” para “vnebula > névoa, “f” para “v”: trifoliu > trevo; houve também a queda de varias consoantes como no caso do “d em gradu > grau, do “l em colore > cor, palu > pau; porém se transforma em “lh” quando seguido de “e” ou “i, como: folia >folha, alienu > alheio.
A queda do “l” intervocálico provavelmente é resultado de uma pronúncia velar desse “l” que teria ocorrido possivelmente em fins do século X, pois num documento em latim bárbaro de 995 podemos encontrar vestígios desse fato, como nos casos: Felice lê-se Fiiz e em Fáfila lê-se Fafia. Esse fenômeno incidiu sobre um grande número de palavras e contribuiu para criar em galego-português vários grupos de vogais em hiato, Ex: salire > sair. É a queda do “l” intervocálico que explica a forma do plural nas palavras terminadas em “l” no singular como no caso: sol em que o plural é soes, hoje sóis. A queda do “l” intervocálico ocorreu apenas em galego-português.
Com relação à queda desse “l” que constitui uma das características fonéticas do português, vejamos o que diz a opinião de CORNU apud COUTINHO (1958):

A presença do l medial em português explica-se pelo fato de terem as palavras, em que se operaria a sua queda, penetrado na língua em época posterior a que ela se verificava; por terem sido reconstituídas segundo os modelos latinos; por haverem sofrido influência analógica; por provirem de outra língua. (p. 122).

Já nas iniciais e finais não houve grades modificações na passagem do latim para o português e as que ocorreram foram por analogia ou por ação de algum fonema vizinho no caso das iniciais como libellu > livel > nível, onde a nasalização do “l latino em “n” deve-se a influência da língua dos povos germânicos, nas invasões ocorridas por volta do século V; do “c” em “g” cattu > gato, colla > gola, esse processo denominado sonorização tem início com a simplificação ortográfica da consoante medial que gerou um enfraquecimento articulatório ou abrandamento, por tanto, iniciando um processo de sonorização que possivelmente influenciou a consoante inicial. A permuta do “c” em “g” parece ter ocorrido no próprio latim vulgar, confrontando: lat. Colpu, it. Golfo, fr. Golfe, esp. e port > golfo. No caso das postonicas teve o “r que se deslocou por metátase para junto da consoante anterior: semper > sempre, super > sobre, inter > entre que possivelmente tenha ocorrido ainda no latim vulgar e o “n” reduziu-se a uma mera ressonância, outrora representada por “m” e hoje por til: sunt > som > são, oratione > oraçom > oração.

9.2. Grupos consonantais
São grupos consonantais a reunião de duas ou mais consoantes contíguas no corpo dos vocábulos. Houve as seguintes ocorrências de metaplasmos:
Palatalização. –Nos grupos iniciais “pl”, “cl” e “fl” em ch /ts/ (clave > chave, plenu > cheio, inflare > inchar) – Estes grupos iniciais sofreram, num primeiro momento, uma palatização do “l” que deu origem à africada /ts/, que foi transcrita em galego-português por ch; dos grupos “pl”, “bl”, “cl”, “gl” e “tl” em “lh” (scoplu > scolu > escolho (verbo), triblare > trilhar, ovicla > ovelha, tegla > telha, veclu > velho) do grupo “gn” em “nh” (pugnu > punho) e  do grupo “sc” em “x”(fasce > feixe).
Rotacismo – Houve rotacismo nas passagens: fl > fr, bl > br, gl > gr, cl > cr, pl > pr; em resumo houve rotacismo na passagem do “l” para o “r” (duplu > dobro, afflictione > afriçom > aflição).
Síncope – Houve síncope na passagem dos grupos: qu > c (quomodo > como), dv > v (adversu > avesso), mn > n (autumnu > outono), sc > x (fasce > feixe) ou c (pisce > peixe), ns > s (mensa > mesa), bt > t (subtu > soto > sótão).
Sonorização – Houve sonorização na passagem dos grupos cr > gr (crupta > gruta) e tr > dr (petra > pedra).
Vocalismo - Houve vocalismo na passagem do grupo ct > ut (saltu > souto) e it (multu > muito), pt > it (preceptu > praceptu > preceito), bs > us (absentia > ausência), lp > up (palpare > poupar), gn > in (: regnu > reino), gm > im (pigmenta > pimenta) e gd > ud (smaragda > esmerauda > esmeralda).
Assimilação – Houve assimilação na passagem dos grupos: ps > ss (ipse > esse), rs > ss (persona > pessoa)
Consonantização – Houve consonatização na passagem do mi > nd (comite > conde)
Desnasalização – Houve desnasalização na passagem do ns > s (mensa > mesa)
Sibilação – Houve sibilação na passagem do rb > rv (arbore > árvore)


10. AS DECLINAÇÕES LATINAS

O latim tinha sua estrutura morfossintática com base nas declinações, ou flexões, que significa acrescentar a parte invariável de um nome uma terminação.
As declinações, de acordo com o Latim Clássico, eram em cinco, mas a primeira e a segunda eram as que concentravam a maioria das palavras latinas.
Essas declinações eram distribuídas em seis casos:
Nominativo - Indica o sujeito e predicativo do sujeito ex: homō ibi stat - o homem está de pé
Genitivo - Expressa posse, matéria ou origem (fonte). Geralmente indica o adjunto adnominal restritivo ex: nōmen hominis est Claudius - O nome do homem é Claudius
Dativo - Indica quem sofre a ação, o objeto indireto da oração ex: hominī donum dedī - eu dei um presente ao homem.
 Acusativo - Expressa o objeto direto do verbo ex: hominem vidi - Eu vi o homem.
 Ablativo - Indica separação ou os meios pelos quais uma ação é efetuada. Ex: sum altior homine - sou mais alto que o homem.
 Vocativo - Usado na comunicação direta para chamar o interlocutor. É o mesmo vocativo da língua portuguesa.
As declinações são assim distribuídas:
Primeira declinação - Compreende as palavras terminadas em “a” nela incluem a maioria das palavras femininas e pouco masculinas ex: rosă, puella(menina), nauta; em que os dois primeiros são femininos e o último masculino.
Segunda declinação - Compreende as palavras terminadas em: ''er'', ''us'', ''ir'', ''um'', tem o radical terminado em “o”  (mudado em alguns casos para “u”), compreende geralmente nomes masculinos terminados em “us”, “er” e “ir”; alguns femininos em “us”; e os neutros em “um”.
Terceira declinação - Compreende os nomes com radical terminado em “i” (com variação para “e”) ou em uma consoante; exclui nomes masculinos, femininos e neutros ex: ovis (ovelha), mare (mar), clamor (clamor).
Quarta declinação - Compreende as palavras terminadas em “us”, predomina o gênero masculino, com alguns poucos femininos também em “us” e neutro em “u”. A quarta declinação diferencia-se da segunda, pois neste faz o genitivo singular em “i” e naquele em “us”, ex: quarta declinação: cantŭs – gen. sing. Cantūs(canto), segunda declinação: anuŭls – anulī( anel).
Quinta declinação – Compreende as palavras terminadas em “es” em geral femininas ex: plebēs (plebe), fidēs (fé), diēs (dia, masculino).


11. MORFOLOGIA

11.1. Substantivo
A estrutura gramatical românica era composta de casos e preposições, sendo substituída por um sistema exclusivamente prepositivo na sua passagem para o português, tendo, por conseguinte, uma flexão de gênero e número bem definidos e aparecendo também o artigo como elemento determinador do sintagma nominal.

11.1.1. Flexão dos substantivos
Os substantivos latinos se flexionavam apenas em gênero e número, já que para indicar o grau eles usavam a forma analítica, assim como: dorsum immane, altum dolarem
11.1.1.1. De gênero
No Latim Clássico os nomes se dividiam em três gêneros gramaticais: masculino, feminino e neutro (neuter = nem um nem outro), na tipologia morfossemântica nem sempre foi muito nítida essa distinção do gênero e que só se tornava explícita na frase, através da concordância do adjetivo com o substantivo: pulcher lupus, pulchra pirus, pulchrum templum. Acontece que no próprio Latim Clássico já havia a tendência para fazer desaparecer o gênero neutro, confundindo-o com o masculino. Era comum a presença, em textos, de formas masculinas como fatus, dorsus, caelus, vinus, vasus em vez do neutro fatum, dorsum, caelum, vinum, vasum. No neutro plural a confusão era ainda maior. Os neutros tinham três casos, nominativo, vocativo e acusativo e que faziam o plural em “a”, mas tornou-se freqüente na fala popular, e até mesmo na língua escrita, o emprego de formas do masculino plural, como castellos, templos, monumentos, onde o certo seria o neutro plural castella, templa, monumenta.
As palavras da primeira declinação latinas eram geralmente do gênero feminino como essas palavras derivavam do acusativo singular em “am tornou-se este “a” a desinência característica do feminino em português: rosam > rosa.  Já o masculino proveio do acusativo singular (masculino e neutro) da segunda declinação latina: vinum> vinu > vinho, templum> templu > templo, essa tendência se generalizou a tal ponto que motivou o completo desaparecimento do neutro, tornando-se masculinos todos os nomes pertencentes a esse gênero.
Outra alteração importante, muitos nomes vindos do plural neutro, por causa da terminação “a”, acabaram incorporados ao feminino (já que esta terminação, por acaso, também era a do feminino), daí a duplicidade de gênero em português, de certas palavras: masc. (neutro sing.):  brachiu > braço, ŏvu > ovo, fructu > fruto; fem. (neutro plur).: brachia > braça, ŏva > ova, fructa > fruta. Em resumo, neutros no Latim Vulgar: no singular > masculino; no plural > feminino.
A maioria dessas palavras, principalmente as neutras, foi, por analogia, classificadas em masculinas ou femininas, independentemente de sua classificação de gênero de origem latina, levando-se em consideração a relação direta com o sexo quando esse é bem definido. Houve uma passagem muito grande do gênero entre as palavras, justamente por conta dessa falta de critério morfossintático na definição do gênero. Essa mudança não faz parte de uma evolução da estrutura fonética, mais sim uma tendência natural de estruturar a língua de maneira mais racional como no dizer de DAMESTETER apud COUTINHO:

[....] essa distinção de gêneros não corresponde a nenhuma idéia lógica. Nos idiomas românicos, os gêneros não servem ordinariamente senão de quadros em que a língua distribui a totalidade, deixando-se guiar mais ou menos obscuramente por analogias exteriores, terminações, sufixos a e algumas razões vagas e contraditórias. Em limitados números de casos, para os nomes de pessoas e lugares e as vezes de animais, o gênero é determinado pela idéia de sexo, e isso mesmo com o desprezo pela etimologia. (1958, p. 255).

O que nos leva a classificar essas mudanças na estrutura morfológica, a partir dos seguintes conceitos de mudanças fonéticas:
Desnasalização – Esse fenômeno fonético deu origem, principalmente, ao gênero masculino em virtude da apócope do fonema “m das terminações do acusativo como nos casos vinum> vinu > vinho, templum> templu > templo.
Com relação ao gênero vejamos o que diz JOÃO DE BARROS apud ROSA MARIA:

Género, em o nome, é uma distinçám per que conheçemos o mácho da fêmea e o neutro de ambos. Os Latinos conhéçem o género dos seus nomes uns pela sinificaçám, outros pela terminaçám, dos quáes fázem estes séte géneros: masculino, feminino, neutro, comum a dous, comum a três, duvidoso e confuso. Os Gregos, dádo que tenham éstas diferenças de género, conhéçem-nô per artigos. Os Hebreo, per artigos e terminaçám. Nós nam sòmente conheçemos o nósso género per significaçám, como os Latinos, mas per artigo, como os Gregos (2007).

11.1.1.2. Número
O plural é indicado, em português, pela desinência “s” ou “es”. Esta desinência representa a terminação do acusativo plural latino.
Além do “s”, a formação do plural se dá, às vezes, pela diferença de timbre da vogal tônica. É o que a acontece com os nomes que encerram o “o” tônico originário do “ŏ” latino que em português da “ô” por influência do “u” final, ao passo que no plural ele conserva o timbre aberto.
Nos nomes masculinos, terminados em “o” que tem formas femininas, representando ou não o feminino dessas formas masculinas, há uma alternância da vogal temática, o que se verifica por exemplo nos paroxítonos que apresentam no tema “o tônico, oriundo do “ŏ latino, no masculino esse “ŏ se torna fechado por influencia do “u” final latino e no feminino, entretanto, ele se conserva aberto por influencia do “a final latino ex: Cŏrvu > corvo /corvu/(sing) - cŏvos > corvos /corvos/(pl), Jŏcu > jogo / jogu/(sing.) - jŏcos > jogos /jogos/ (pl), Fŏcu > fogo /fogu/(sing) - fŏcos > fogos /fogos/(pl).
Este fenômeno encontra a sua justificação na pronúncia diferente que devia ter no antigo português o “o” final com som /o / e o com som /u/. Por isso no dizer de JOSEPH M. PIEL apud COUTINHO:

A regra da gramática histórica românica, que diz que as vogais finais tônicas latinas ŭ e ō se fundiram numa só: o ō não se deve por conseguinte, estender, como se tem feito, as vogais finais, principalmente depois de Menendez Pidal ter demonstrado de uma maneira insofismável que em documentos antigos do Norte da Península, dos séculos X e XI, se conservam vestígios da sua distinção ( escrevendo por exemplo  debemus, mas sapiendo), e que existem falas em que ainda hoje ela se reflete. (1958, p. 260/261)

No caso das formas terminadas em “al”, “el”, “il”, “ol” e “ul” que mudam o plural de “l” para “is” ex: animal / animais, carrossel / carrosséis, etc. ocorreu o seguinte processo: as formas plurais portuguesas originaram-se do acusativo plural latino. Foram às terminações latinas “ales”, “eles”, “iles”, “olés”, “ules”, que geraram, respectivamente, “ais”, “éis”, “is”, “óis”, “uis”; pela síncope do “l” intervocálico e a passagem do “e” átono para “i”; assim como:  animales > animália > animais, fideles > fiees > fiéis,  fossiles > fossees > fósseis,  olés > oes > óis: soles > soes > sóis, paludes > paues > pauis > paus.
As terminações latinas “anu”, “ane”, “ine”, deram em português “ão” e “ã” por influência da nasalidade ocasionada pelo “n” à vogal anterior, depois as duas últimas terminações foram absorvidas pela primeira. Entretanto no plural aparece a distinção originária. É o que se podemos perceber nos seguintes exemplos: paganu > pagã(o) / paganos > pagã(o)s, pane > pão / panes > pães, sermone >  sermão / sermones > sermões, multitudine > multidão / multitudines > multidones > multidões
As palavras que, em nossa língua, terminam em “em”, “im”, “om”, “um”, têm o plural, respectivamente, em “ens”, “ins”, “nos”, “uns”. Estas terminações procedem do acusativo plural latino “enes”, “inês”, “inês”, “onos”, “ūnos”, ex: juvenes > jovēes > jovens, fines > fīnes > fīis > fins, : virgines > virēes > virgens, tonos > tōos > tons, jejunos > jejūos > jejūus > jejuns

11.1.2. Adjetivo
Os adjetivos latinos acompanham os substantivos seguindo a segunda declinação para os gêneros masculino e neutro e a primeira para o gênero feminino e seguem a terceira para os três gêneros; por isso, foram divididos em adjetivos de primeira e segunda classe. Com desaparecimento do neutro conservaram as duas formas, masculina e feminina, tanto para o adjetivo de primeira classe quanto os da segunda classe.
Por causa dessa queda do neutro começaram as confusões entre os adjetivos de primeira e segunda classe, principalmente no Latim Vulgar.
A terminação do acusativo neutro da segunda declinação conservou a sua desinência primitiva de gênero masculino um, ocorrendo na passagem ao português apenas a desnasalização da mesma: autum >  autŭ > autu > auto, como também no feminino de primeira classe que fazia o acusativo da primeira declinação em “a” como: bona > boã > boa, que enfrentou o mesmo processo de alteração fonética

11.2.. Numeral
Há em latim duas espécies de numerais, os cardinais que mostram o número dos objetos (Unus > um duo > dois) e os ordinais que mostram a ordem dos objetos (Primus > primeiro, secundus > segundo).

11.2.2.1. Cardinais
Entre os cardinais podemos destacar as seguintes evoluções fonéticas:
- Unu > ũu > um O “n” nasalisou “u” anterior fundido-se os dois “uu” em crase, a partir doséculo XV; e una > ũa > uma  este numeral provém do arcaico ũa pela a intercalação da consoante labionasal “m” depois da vogal também labial ũ.
 - vīgĭntī > viinti > viinte > vinte. O “ ĭ ”  medial breve teria se conservado em “ i ” por assimilação do “ī” funal., Leite de Vasconcelos está de acordo com a origem acima indicada, mais acrescenta:

O existir em espanhol arcaico  veīnte  com acento no “ i ” faz crer eu também existiu essa forma em português, donde por assimilação ; > vinte.  A forma viinti pertence a uma época viginti = vigente > viinti em latim vulgar por Umlaut > veinte (espanhol arcaico), por dissimilação do francês vecino e do português arcaico viinte e por assimilação vinte. A forma viinti pertence a uma época e viinte a outra; por isso não há contradição nos fenômenos (Idem. 1958. p. 271)

Nonaginta > novagĭnta > noveenta > noventa. Em novagĭnta o “v” se explica por analgia com novem
Centu > cento cem. No português arcaico podia-se dizer indiferentemente “cem” ou cento anos. Hoje, cento só se usa combinado com dezena e unidade: cento e vinte, cento e dois. A apócope deu-se por ser a palavra proclítica.
Quingentos > quinhentos. Há muitas controvérsias na explicação da formação  do vocábulo “quinhentos”. Para NUNES. J.J. (Apud COUTINHO, Ismael de Lima. 1958. P.272) “o ‘g’  do grupo ‘ng’ latino se vocalizou. Dessa forma, teria surgida a forma quinientos que gerou a atual forma em português “quinhentos” por palatização do “n” na seguinte ordem de evolução fonética /ni/ > /ny/ > /ñ/ e que em espanhol teria se conservado inalterada. Para VASCONCELOS, Leite de (Apud  COUTINHO, Ismael de Lima. 1958. P.272) “quinhentos vem de quingentos com assimilação do ‘g’ latino a nasal precedente, como em Sam-Joane > Sanhoante”. Para WILLIMS, Edwin (Apud  COUTINHO, Ismael de Lima. 1958. P.272) “este numeral proveio do espanhol, a exemplo de outras palavras, como ringire > renhir, tangére > tanher(arc.), onde o referido grupo da normalmente ‘nh’”.

11.2.2.2. Ordinais
No caso dos ordinais latinos, com a exceção dos três primeiros, quase não sofreram modificação em nossa língua porque foram introduzidos por via literária ou culta. Diz GRANDGENT apud COUTINHO (1958. p.273): “[....] a partir do século V os numerais ordinais foram pouco usados pelos romanos.”
Primariu > rimário > primeiro. No latim clássico, a forma deste numeral era primus, que ficou conhecido entre nós para indicar os parentes em primeiro grau colateral.
Secundu > segundo. No português arcaico houve o substantivo segundo que significava tempo, conservando-se até hoje para indicar a fração mínima de hora.
Octavu > oitavo. Ë da mesma origem do nome próprio Otávio que significava o oitavo filho. Foi o término de oitavo que gerou a palavra “avos” empregada para designar as frações cujos denominadores são maiores que dez.

11.3. Artigo
O Latim Clássico não possuía artigo. Essa classe de palavra só aparece nos últimos tempos do Latim Vulgar.
O artigo definido originou-se dos pronomes demonstrativo “ĭllu” e “ĭlla” que no latim vulgas  era empregado em situação idêntica a desse artigo, como no exemplo: cito proferte mihi stolam illam primam.
Foi a seguinte  a evolução do artigo definido: ĭllu > ello > lo > o; ĭlla > ela > la > a; ĭllos > elos > los > os; ĭllas > elas las > as.
Nessa evolução podemos perceber a ocorrência de uma metafonia do “ĭ” para “e” em seguida uma simplificação da consoante “l” e logo depois uma seqüência de aférese do “e” e do “l” restando apenas os artigos como conhecemos hoje que são “o , a , os, as”
Com relação aos artigos indefinidos o numeral “unus” aparece com essa função no Latim Clássico, ainda que raramente. Já no Latim Vulgar esse emprego e freqüente como no exemplo: accessit ad eum una ancilla.  Foi a seguinte a evolução do artigo indefinido: unu > ũu > ũa > uma; unos > ũos > ũus > uns; unas > ũas > umas.
Essa evolução ocorreu primeiro por um processo de nasalização da vogal “u” e depois por dissimilação do “u” final para “a”, tendo por base dessa evolução o acusativo latino da segunda declinação que fazia o singular em “um” e o plural em “os” finais.
Coutinho cita Leite de Vasconcelos para explicar a origem da forma uma.

Os artigos indefinidos um e uma tinham outrora as formas ũu e ũa, ambas dissilábicas. A última conservasse ainda na linguagem popular, quer assim mesma , quer com n gutural ũna. A forma ũu, de que um(ũ) é mera simplificação, não anterior ao séclo XV, provém do latim unu, por nasalamento do primeiro u, e queda subsequente do n, como em sonu > sõo, bonu > bõo;  a simplificação a que há pouco aludi, deu-se do mesmo modo em jejum(jejũ), que provém do arcaico jejũu. O m que se desenvolveu em ũa, donde uma, tem como pararelo o desenvolvimento de nh em vĩo, que se tornou vinho; aqui foi o som palatinonasal  ĩo que provocou a consoante palatino-nasal nh; ali foi o som labionasal ũ que provocou a consoante labionasal m. (Idem. p. 277)

11.4. Pronomes
Havia no latim os pronomes pessoais, demonstrativos, possessivos, relativos/interrogativos e indefinidos.
Os pronomes pessoais retos de primeira e segunda pessoa do singular mantiveram suas formas quase que inalteradas: ego > eo > eu e tu > tu, com uma pequena alteração na primeira pessoa, onde houve a síncope do fonema /g/ e com a nova formação que sucedera “eo” houve a oclusão da mesma. O pronome da terceira pessoa do singular originou-se do demonstrativo ille > ele(masc.) e illa > ella(fem.) já que em latim não havia a terceira pessoa e esses pronomes demonstrativos supriam essa falta, no caso de “ille” houve uma simplificação ortográfica e a assimilação do “i” pelo “e” e com  “illa” a mudança de “i” para “e” veio por analogia a “ele”. No plural não houve mudanças significativas na estrutura fonética. Embora o acusativo seja o nosso caso lexicogênico, a língua portuguesa conservou alguns vestígios dos outros casos latinos. Do nominativo restaram os pronomes pessoais retos: ego > eu, tu > tu, ĭlle > ele, nos > nós, vos > vós e os demonstrativos: ĭste > este, ĭpse > esse, *accu+ĭlle > aquele.
Nos pronomes pessoais oblíquos temos as seguintes evoluções: mihi > mi > mim, a forma mi pôde ser percebida até o fim do século XV como no exemplo “Ouve os danos de mi” (Os Lusiadas); no caso dos pronomes “comigo”, “contigo”, “conosco”, “convosco” são formados pelos pronomes mecum, tecum, secum, nobiscum, vobiscum mais “cum” preposição “cum” mais as formas latinas desses pronomes, como se segue: cum + mecum >com +  mego >comigo >cum + tecum >com + teco >contico > contigo, cum + secum > com + seco >  consego > consigo, cum + nobiscum > com + nobisco > connoisco > conosco, cum + vobiscum  >  com + vobisco > convoisco > convosco.
O prefixo “cum influenciou na mudança da vogal da primeira sílaba da palavra que o segue como no caso: cum + tecum > contigo, com +  mego > comigo; caracterizando assim uma apofonia. Nos casos cum + nobiscum > conosco e cum + vobiscum  > convosco houve uma convosco m sibilação do fonema /b/ em /v/. Em todos houve uma desnasalização.
 Com relação aos pronomes demonstrativos podemos observar a seguinte evolução: ipse > esse, ipsa > essa, ipsu > isso, iste > este, ista > esta, istu > isto, accuille > aquele, accuilla > aquela, accuillu > aquilo. Nesses casos houve a assimilação do fonema /p/ pelo /s/ como em ipse > esse, já na mudança do /i/ para /e/ houve a ação da metafonia como em  istu > isto e nos casos como accuille > aquele houve uma monotongação do “ui” para “i”.
Nos pronomes possessivos tivemos o seguinte processo evolutivo: mīa > mia > mea  >  minha,  houve uma palatalização do “a” e uma nasalização  do “e” por influência do “m”passando para “i”; em tuu > teu ou tua, a mudança do “u” pelo “e” e “a” se deu por analogia das formas meu e mīa; suu > seu, que proveio da analogia com meu;  vestru > vostru > vosso; nostru > nosso.
As formas que deram origem aos pronomes relativos e interrogativos como conhecemos foram: quid > que e quem, cuiu > cujo, quale > qual, unde > onde, quatu > quanto, quem > quem; em que houve uma apócope do fonema /d/ em quid > que e posteriormente uma nasalização da forma “que” para “quem” possivelmente por analogia com a raiz latina que sempre terminava palavras com nasal; já em cuiu > cujo é percebida a necessidade de uma consoante já que tem um encontro de três semivogais juntas e por conseguinte houve a palatalização pela epêntese do fonema /j /; em quale > qual houve apenas a apócope do fonema /e/ e nos outros casos, metafonia do /u/ para /o/.
Para os pronomes indefinidos temos os seguintes processos: aliquod > algo, aliquem > alguém, ne + uqem > neguem > ninguém, nata > nada,  totu > todo, alucunu > alguu > algum, nec+unu > neũnu > nenhum, a palatalização com o “nh” vem por analogia com “minha” que no antigo português era a forma empregada para “ninguém”, multu > muito; pauco > pouco; unu > um. No caso de aliquod > algo houve a desonorização na passagem qu > g e a epêntese do “d” que já estava deslocado no final da palavra e com a tonicidade passando para o “a” no inicio da palavra sucedeu a síncope do “i”; na passagem ne + uqem >  ninguém o que ficou bem evidente foi a sinalefa na junção do prefixo à palavra e a sonorização na passagem do fonema /t/ > /d/ como em totu > todo.

11.5. Verbo
O estudo da passagem dos verbos do latim ao português corresponderia a um trabalho isolado de tão extenso o assunto a ser abordado, por isso, é que nesse trabalho nos deteremos a uma análise dos metaplasmos em alguns dos verbos mais praticados na Língua Portuguesa, já que para estudarmos este assunto de forma aprofundada teríamos de nos remeter a uma serie de relações morfossintática que explicariam de forma mais exata as relações que influenciaram tais mudanças.
O sistema verbal latino, como uma língua, era baseado em um emaranhado de oposições em torno das noções modo, tempo, pessoa número e voz; expressos por desinências: amabo (tempo), amem (modo), amas (pessoa), amamus (número), amor (voz). Essas desinências, como ocorria no sistema nominal, permitiam freqüentemente fenômenos de alomorfismo, ex: alomorfes de futuro representado por “bo” e “am” em amabo, legam; e coincidência formal ex: o alomorfe “am” representa ao mesmo tempo o presente do subjuntivo e o futuro do indicativo. Tal sistema se viu submetido a profundas mudanças, sobretudo a partir do Baixo Império.
No processo de evolução do latim houve a perda do futuro e para suprir a necessidade do emprego do tempo no futuro empregou-se uma locução verbal do infinitivo de qualquer verbo com a forma verbal do verbo habere (ter), como nos casos: amare + habeo >  amar + hei > amarei, amare + haves >  amar + hás > amarás, amare + habebam = amar + havia > amaria.
O processo de evolução para a unidade desses dois termos na formação de um futuro sintético, em primeiro momento pela síncope da consoante intervocálica na segunda palavra, seguindo da assimilação de uma vogal pela outra e posteriormente a sinalefa na junção das duas palavras em apenas uma.
Vejamos agora algumas mudanças que ocorreram nas formas verbais e suas principais alterações fonéticas: Amabam (preterito perfeito do indicativo) > amava (pretérito imperfeito do indicativo), Amem (presnete do subjuntivo) > ame (presente do subjuntivo), Amarem (Pretérito do subjuntivo) > amasse (pretérito do subjuntivo), Amavi (presente do indicativo) > amei(presente do indicativo).  
Percebemos inicialmente e sobre tudo uma das tendências mais marcantes que caracterizaram essa passagem do latim ao português, a apócope do “m” caracterizando assim a desnasalização e posteriormente a sibilação b > v e r > ss que era freqüente principalmente na evolução das formas verbais.
Da forma verbal Sĕrvio > servho > servo originou a forma sirvo o “i”  que é resultado da metafonia por influência do “o” final, assim como em sensu > seso > siso. Algo semelhante ocorreu na série: dormio > dormho > dormo > durmo, em que o “u” sofre inflexão (um tipo particular de metafonia) por influência do “o” final. 
Na evolução do português arcaico para o português moderno. Temos as seguintes passagens:
Pretérito imperfeito do indicativo: Amávades - amavaes - amávees - amáveis, Devíades - devíaes - devíees - devíeis, Partíades - partíaes - partiees - partíeis.
Pretérito mais-que–perfeito do indicativo: Amárades – amáraes – amárees - amáreis, Devérades - devéraes - devérees - devéreis, Partírades - partíraes – partírees - partíreis.
Pretérito perfeito do indicativo: amaríades - amaríaes - amaríees - amaríeis, deveríades - deveríaes - deveríees – deveríeis.
 Em todos esses casos percebemos a síncope do “d” intervocálico que desencadeou as assimilação (ae > ee) e dissimilação ( ee > ei) seqüentes.

11.6. Advérbio
A maior parte dos advérbios em latim provém de adjetivos e particípios que formando locuções tinha o valor de advérbio ou uma única forma para representar uma locução adverbial como nos casos a seguir: hac nocte > a nocte > aõite > oonte > onte > ontem; de + post > após; de + ex + post > depois; em hoc die (este dia) > hodie > hoje, este último advérbio é um dos exemplos em que o latim /d/ + /y/ precedido de vogal resultou em //, como também adiutare > ajudar e uideo > vejo; ad  + maniana > a manhã > amanhã; ad + sic > assim; in+bona+hora > embora; illac > por ali; origina-se do latim de + post  > depos > depois  com apócope do /t/, sobre a origem do /i/ talvez se explique pela tendência de ditongação do “os” final na linguagem coloquial e popular, como pôs > pois.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

As línguas nascem, crescem até atingir o seu máximo de riqueza num período áureo, entram em decadência e morrem, assim como todo ser vivo; mas, assim também como um ser vivo, deixa sementes; foi assim que ocorreu com o Latim, que deixou “sementes” e que geraram bons frutos nas chamadas línguas neolatinas como o Francês, Italiano, Espanhol e nessa que é a quinta língua nativa mais falada no mundo, a única falada em quatro dos cinco continentes e que apresentes uma das mais belas histórias de sua formação, a Língua Portuguesa. História essa que procuramos reproduzir numa visão focada nas transformações fonéticas do latim ao português, transformações a que toda língua está sujeita já que a língua é dinâmica, portanto, sujeita a constantes mudanças no decorrer do tempo.
Desenvolver um trabalho voltado ao estudo dos metaplasmos do Latim ao Português, isto é, fazer uma analise das mudanças fonéticas no decorrer do tempo entre a língua mãe e as línguas germinadas, transcende o campo lingüístico e adentra no campo da antropologia e da sociologia, já que buscamos na língua portuguesa brasileira as influências de outros povos no falar do povo brasileiro e nas mudanças que ocorreram a partir da nossa raiz latina e naquilo que nos aproxima dela, mudanças essas que nem sempre estão presentes na memória dos falantes.
Analisando a língua numa perspectiva histórica, com certeza, encontraremos respostas para os inúmeros questionamentos dos mecanismos lingüísticos.
Assim, o ensino da gramática acompanha o processo evolutivo da língua, os questionamentos aos poucos terão respostas eficazes, e no “túnel do tempo”, notaremos que o que hoje é considerado “errado” em outros tempos mais remotos era correto.


BILOGRAFIA

BUENO, Francisco da S. A Formação Histórica da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1955

COLTINHO,Ismael de Lima. Pontos de Gramática Histórica. Rio de Janeiro. Livraria Acadêmica. 1958. 4ª edição

COMBA, Júlio. Gramática Latina para Seminários e Faculdades. São Paulo. Editora Salestiana Dom Bosco, 1991. 4ª edição

NETO, Serafim da Silva. História da língua portuguesa. Editora Presença INL. 1988

OTHERO, Gabriel de Ávila. Introdução ao Português Histórico. São Leopoldo – RS.         COOPRAC – Cooperativa de Produção Acadêmica.2000

QUADRO, Jânio. Curso Prático da Língua Portuguesa e sua Literatura. São Paulo.        Editora Formar LTDA.1969.3ª edição

SILVA, Rosa Virgínia Mattos. Como se estruturou a língua portuguesa. Anais eletrônicos do Museu da língua portuguesa. http://www.museudalinguaportuguesa.org.br/. Acesso em: 05 de nov. 2007.




[1]Professor titular  de Língua Portuguesa da rede pública do estado do Ceará
 Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVAGraduado em LetrasE-mail: fariasfilho2006@hotmail.com

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